Enquadrar, recortar, suspender o acontecimento no ato: a fotografia é essa súbita paralisia; o sequestro do tempo-espaço na intermitência paradoxal do “ainda não”/ “não mais”; a interrupção dos nexos ordinários entre imagem e palavra. Filmar é isso e ainda religar os fragmentos erráticos na sucessão de imagens, costurar os elementos heterogêneos, os tempos e ritmos diversos, os espaços e os corpos que os ocupam, as imagens e as palavras que as enunciam, as sonoridades de diferentes fontes, das batidas frenéticas e às pausas serenas. Golpe e sutura, corte e montagem: o olhar da câmera separa e junta o que parecia díspar e disperso.

Quando Thales Leite deparou-se com as festas de aparelhagem na periferia de Belém, seu olho viajante e estrangeiro surpreendeu-se com aquelas enormes estruturas metálicas, semelhantes a espaçonaves saídas de antigos filmes de ficção científica. Pousadas quietas e sonolentas nos galpões, pareciam vindas de um futuro já suspenso ou de um passado sem porvir. Despertas durante a festa, erguiam-se em meio a multidão como um xamã ou um deus em presença, convocando todos a um transe coletivo, em meio à profusão de luzes, à fumaça que subia e envolvia os corpos. Corpos afetados pela fusão de ritmos, da música eletrônica aos gêneros locais, do carimbó ao lundu. Corpos transpassados pela aceleração dos fluxos, pela perturbação sensória de luzes e sons, pela excitação das batidas e pelo delírio hipnótico.

Todavia sua associação com o cinema ultrapassa o repertório visual das ficções científicas: as festas de aparelhagem e o tecnobrega lançam mão de procedimentos próximos da montagem e da edição, típicas do cinema, em que rupturas e suturas são geradoras tanto de choques como de novas articulações entre formas e percepções, entre imagens sons, entre tecnologias e sensibilidades. Uma arte de interrupções e rearranjos de tempos e elementos em ordens heteróclitas, mas que se recusa a se abster da fecundidade e das promessas de sua desordem. Tampouco ficção é a criação de um mundo ilusório se contrapondo ao real: são formas inauditas e ousadas de conexão entre um mundo referencial e os outros mundos que o atravessam ou orbitam à sua volta. Por isso naves espaciais podem invadir o paraíso intocado ou o inferno verde. A própria iconografia amazonense emerge do cruzamento e confronto de visões e imaginários sobre e da Amazônia, do indígena ao cristão, entre estereótipos perpetuados e singularidades reivindicadas.

Como um artista, um viajante, Thales filtra esse universo por seus olhos mecânicos, por suas lentes de vidro. Cria sua própria ficção entre golpes e suturas, entre cortes e montagens. Se optou por “capturar” as naves alienígenas pela fotografia, o fez acentuando sua estranheza e gigantismo ao excluir a figura humana ou ao seccioná-las como um cirurgião em uma aula de anatomia. Águias de fogo, Diamantes, Príncipe negros compõem também um assombroso bestiário tecnológico ali adormecido ou dissecado. Por outro, pela lente do cineasta, escolheu o olho como personagem dessa trama com suas caçadas e capturas, com suas invasões e flagrantes, com seus jogos especulares. No filme, “inverte-se o jogo” como diz: ele é o outsider, o caçador flagrado em sua caçada. Do meio da multidão distraída, olhares vão despertando do torpor e descobrindo, entre desconfiança e curiosidade, o olho de vidro e o estranho por detrás que os olha. No mais, é embarcar nas tramas desses olhares e nas fugas dessa viagem.

Marisa Flórido Cesar