ENCANTO PELO RECATO
Estas fotografias são capturadas por um mesmo tema: edifícios em construção,
reforma ou restauro, cobertos por telas de proteção. Sabe‐se que tais objetos
podem ser encontrados com facilidade nas grandes cidades. Para além da
inevitável deterioração pelo tempo, a especulação imobiliária e a consciência
patrimonial mais rapidamente os tornou triviais.
Mas estas imagens não se interessam por diferenciar as vontades concretas de
renovação das de preservação, nem por identificar os momentos em que tais
vontades coincidem. A propósito, a palavra tombar, usada no sentido de
inventariar, comporta ironicamente o sentido de derrubar, fazer cair.
Ao mesmo tempo em que emprestam à arquitetura dessas edificações certa
solenidade atemporal, parecendo inclusive lhes cobrar reverência, exibem‐na
com algum encanto por meio do que move e muda, como se meditassem na vida
e morte das formas, na beatitude da luz, no presságio das sombras.
Há 150 anos, Baudelaire reconheceu um sentido de beleza nessa dualidade
misteriosa (entre o eterno e o variável), enquanto "[...] consequência fatal da
dualidade do homem". Desta vez, no entanto, toda vivacidade humana parece
haver sido evitada. Nestas cenas, apesar dos esforços em obra, sopram ares de
um abandono imemorial.
Por outro lado, quando consideradas em primeiro plano, as telas de proteção não
mais aparecem em seu uso técnico: proteger tanto os edifícios, quanto os
transeuntes. Sua tonalidade, saturação e luminosidade foram alteradas por
filtros e recursos de pós‐produção, para melhor evidenciar contrates, tramas e
linhas; para que, desprovidas de um sentido anterior, pudessem melhor
favorecer a imaginação.
Neste ponto, a imagem não é uma coisa inerte. Os prédios são como proas, os
drapeados são como mortalhas, as emendas são como trilhos etc. "O que se vê,
antes não era, e o que era, já não mais é" – disse Da Vinci em algum lugar, sobre a
beleza do fogo. Assim, contraditoriamente, aquela redução compositiva (do
mundo que existe fora do plano) logo dispõe um regime de excessos ou abusos.
A composição desloca a função dos elementos objetivos (mas sem eliminá‐la),
fazendo com que as fachadas tomem o lugar de estruturas, com que as telas
tomem o lugar de fachadas ornamentais. Também ela produz uma justaposição
de temporalidades, de modo que o moderno, por exemplo, pode ser visto como
fazendo as vezes do helênico, do gótico ou do barroco.
Mas o que velam estas imagens? De fato, a fotografia assume aqui outro estatuto,
não mais o de documento: ela é o que esvazia a verdade do real e da história,
para talvez homenagear as frivolidades do poder, mas também o que nos faz
entender que a verdade é sempre alguma coisa modificada.
Cayo Honorato
Estas fotografias são capturadas por um mesmo tema: edifícios em construção,
reforma ou restauro, cobertos por telas de proteção. Sabe‐se que tais objetos
podem ser encontrados com facilidade nas grandes cidades. Para além da
inevitável deterioração pelo tempo, a especulação imobiliária e a consciência
patrimonial mais rapidamente os tornou triviais.
Mas estas imagens não se interessam por diferenciar as vontades concretas de
renovação das de preservação, nem por identificar os momentos em que tais
vontades coincidem. A propósito, a palavra tombar, usada no sentido de
inventariar, comporta ironicamente o sentido de derrubar, fazer cair.
Ao mesmo tempo em que emprestam à arquitetura dessas edificações certa
solenidade atemporal, parecendo inclusive lhes cobrar reverência, exibem‐na
com algum encanto por meio do que move e muda, como se meditassem na vida
e morte das formas, na beatitude da luz, no presságio das sombras.
Há 150 anos, Baudelaire reconheceu um sentido de beleza nessa dualidade
misteriosa (entre o eterno e o variável), enquanto "[...] consequência fatal da
dualidade do homem". Desta vez, no entanto, toda vivacidade humana parece
haver sido evitada. Nestas cenas, apesar dos esforços em obra, sopram ares de
um abandono imemorial.
Por outro lado, quando consideradas em primeiro plano, as telas de proteção não
mais aparecem em seu uso técnico: proteger tanto os edifícios, quanto os
transeuntes. Sua tonalidade, saturação e luminosidade foram alteradas por
filtros e recursos de pós‐produção, para melhor evidenciar contrates, tramas e
linhas; para que, desprovidas de um sentido anterior, pudessem melhor
favorecer a imaginação.
Neste ponto, a imagem não é uma coisa inerte. Os prédios são como proas, os
drapeados são como mortalhas, as emendas são como trilhos etc. "O que se vê,
antes não era, e o que era, já não mais é" – disse Da Vinci em algum lugar, sobre a
beleza do fogo. Assim, contraditoriamente, aquela redução compositiva (do
mundo que existe fora do plano) logo dispõe um regime de excessos ou abusos.
A composição desloca a função dos elementos objetivos (mas sem eliminá‐la),
fazendo com que as fachadas tomem o lugar de estruturas, com que as telas
tomem o lugar de fachadas ornamentais. Também ela produz uma justaposição
de temporalidades, de modo que o moderno, por exemplo, pode ser visto como
fazendo as vezes do helênico, do gótico ou do barroco.
Mas o que velam estas imagens? De fato, a fotografia assume aqui outro estatuto,
não mais o de documento: ela é o que esvazia a verdade do real e da história,
para talvez homenagear as frivolidades do poder, mas também o que nos faz
entender que a verdade é sempre alguma coisa modificada.
Cayo Honorato