TRANSFIGURAÇÃO DO REAL

Zalinda Cartaxo

A série fotográfica Véus do artista e fotógrafo Thales Leite traz à tona diversas questões compatíveis com a realidade do mundo atual que superam a extrema qualidade da imagem, ou seja, não se trata de uma obra que privilegie a beleza, mas, que, contudo, a utiliza dentro de um recorte referencial histórico, ou seja, possui filiações históricas.

As imagens fotográficas capturadas por Leite são recorrentes da sua experiência urbana, quando, se depara com as telas de proteção utilizadas em obras arquitetônicas comuns na cidade. Assim, tal qual a figura do flaneur, o artista perambula pela cidade atento a tal situação.

Contudo, não se trata de um mero registro de imagem, senão, de uma construção, melhor, de uma reconstrução da realidade. O artista só fotografa o que cabe ao seu projeto mental e que antecipa os seus resultados.

Assim, o modus operandi de Leite, possui etapas: o encontro de uma situação-imagem; a sua captura; e, finalmente, a manipulação digital dos seus contrastes e sombras. Portanto, de imediato, observamos a negação do exercício da fotografia no seu modelo mais mecânico, como mera captura de imagem.

O surgimento da fotografia como possibilidade estética baseou-se, justamente, na sua negativa como mero meio de reprodução do real, quando novas formulações, especialmente, de natureza filosófica, prevaleceram.

Deste modo, fotógrafos como Eugène Atget, no século XIX, ou Aleksandr Rodchenko, no século XX, trouxeram novas abordagens e problemáticas a fotografia. Mais recentemente, entre os séculos XX e XXI, a fotografia afirmou-se, mais, como meio de reflexão crítica do real e, menos, como uma técnica que replicava a realidade.

É notória a influência da fotografia do início do século XX na série Véus, de Leite, especialmente, do expressionismo alemão, assim como, dos registros fotográficos da arquitetura racionalista europeia, quando privilegiava, através dos contrastes e da variada escala de tons cinzas, a volumetria da arquitetura.

O alto contraste das fotografias de Leite, notoriamente, expressionais, dramatizam e corroboram na construção de uma nova realidade, fruto das considerações críticas da sociedade atual, com os seus conflitos e contradições.

Se, por uma lado a fotografia documental da arquitetura racionalista europeia do início do século XX prezava a ordem, a clareza e a solidez do novo modelo arquitetônico, as imagens fotográficas de Leite, operam a partir de uma certa desordem que contraria a ortogonalidade arquitetônica. O excesso de obscuridade resultante do alto contraste, de algum modo, imprime dose de barroquismo.

A presença das telas de proteção sobre arquiteturas, de véus, de algum modo, faz referir à obra interventiva do artista Christo, quando embalava arquiteturas. Contudo, diferentemente deste, que ocultava as informações da superfície arquitetônica, revelando, apenas o seu volume e contornos, as imagens de Leite interferem no layout da arquitetura, amaciando-a através da fluidez dos seus véus.

Diferencia-se, também, da célebre escultura Virgem Velada, do escultor italiano Giovanni Strazza, quando o véu que encobre a imagem, ambos em mármore, revela a figura feminina integralmente. Os véus de Leite, muitas vezes materializam-se tridimensionalmente, quando sua volumetria conflita com a arquitetura original, transformando-a.

O expressionismo das suas imagens fotográficas podemos associar, também, a uma dramaticidade, quando a realidade torna-se, de algum modo, uma hiper-realidade. Não pela sua similaridade formal, senão, pela ênfase das suas fragilidades e transfigurações.

Se o expressionismo alemão conciliou o aspecto dramático das suas imagens ao uso do preto e do branco, do alto contraste, além da presença de luz e sombra, conferindo teatralidade, as arquiteturas com véus de Leite ofertam uma nova dimensão, em que a desconstrução da imagem garante, sempre, a sua reconfiguração.

A utilização do preto e branco nas suas imagens fotográficas, de algum modo, remete à certa nostalgia. Um tempo anterior, cuja reprodução era em preto e branco. A utilização do preto e do branco nas imagens, de uma forma geral, cria distanciamento da realidade cotidiana ofertando experiência reflexiva, além de uma visão de mundo subjetivada.

A utilização dos seus campos perspécticos também alude à nostalgia. De acordo com Victor Burgin, ao referir-se ao uso dos espaços euclidianos hoje, com as novas tecnologias, evocam, especialmente, as ilustrações de tratados do século XVIII sobre a perspectiva, em grande medida com o mesmo efeito extraordinariamente nostálgico.

As perspécticas nas fotografias de Leite são extremamente relevantes, visto que, afirmam a nossa presença.

Se a representação pictórica da arquitetura no Renascimento era meio de construção espacial pelo uso da perspectiva de ponto de fuga, na atualidade ela constitui-se como metáfora da nossa realidade.

A perspectiva de ponto de fuga da tradição converte-se, hoje, na afirmação da subjetivação do olhar, visto tratar-se de um fenômeno fisiológico do olho humano.

Assim, como um flaneur que perambula na cidade, Leite, através das suas fotografias reproduz a sua condição de sujeito no mundo. Compartilha a sua experiência do olhar como se fosse a de qualquer outro que participa cotidianamente dos eventos da cidade.

O olhar arquitetônico ofertado por Leite, com angulação de baixo para cima, olhar de transeunte, difere, por exemplo, das fotografias, também de baixo para cima, de Rodchenko.

Segundo Rodchenko, “a fotografia de uma fábrica recentemente construída não é a fotografia de um edifício. (...) não é um simples fato, mas é motivo de orgulho e de alegria pela industrialização do país (...), e é necessário encontrar o modo de traduzir na fotografia essas sensações (...) Temos a obrigação de experimentar”, conclui o artista.

Assim, como numa espécie de pedestal que a eleva, a imagem arquitetônica de Rodchenko expressa, de algum modo, força e grandiosidade.

Nas imagens fotográficas de Leite, o olhar que reproduz e compartilha a experiência do transeunte, refere-se, mais, a constatação dos acontecimentos independentes da cidade, metáfora do mundo, e, menos, a sua exaltação.

Sua estética, de algum modo, funesta, obscura, colabora na ênfase temporal das suas imagens. Seu aspecto irreal, alude à uma outra realidade que considera o tempo passado.

Os véus das suas imagens, muitas vezes, pela ação do vento, promovem coreografias, em que os drapejamentos nos fazem lembrar de uma origem clássica, assim como, da arquitetura. Oram criam corpos independentes, ora insuflam.

A rigor, a tela de proteção de obras deveria se constituir como um punctum. De acordo com Roland Barthes o punctum refere-se à uma picada, um pequeno orifício, uma pequena mancha, um pequeno corte, ou seja, qualquer pormenor que acaba por preencher toda a imagem fotografia.

Contudo, aqui, pelo fato de Leite neutralizar igualmente ambas, arquitetura e telas, acabam por converterem-se num só corpo. Um corpo, agora, móvel, ao sabor do vento.

Se a arquitetura pode ser entendida como um corpo, com os véus de Leite, converte-se, também, em pele.

O artista explora todas as possibilidades ofertadas pela presença dos véus: suas transparências ou opacidades, seus movimentos ou inércias, seus drapejamentos ou planaridades. Tais condições confrontadas às arquiteturas promovem uma nova configuração distanciada da realidade.

Assim, suas imagens fotográficas desta série promovem estranhamento. De acordo com Freud, o estranho ou o unheimlich refere-se a uma sensação de inquietação que surge quando algo familiar se torna desconhecido ou perturbador.

A irrealidade imagens fotográficas da série Véus promove uma visão crítica sobre a realidade. Para Anthony Vidler, a arquitetura é influenciada por questões sociais, culturais e tecnológicas, e como essas influências moldam a forma e a função dos edifícios. O autor destaca a necessidade de um diálogo entre o passado e o presente, sugerindo que a arquitetura contemporânea deve aprender com a história enquanto responde às demandas do mundo moderno.

Deste modo, a nostalgia da imagem em preto e branco corrobora na sua dimensão temporal, em que passado e presente tornam-se uníssonos.

A imagem dos véus também colabora nesta indefinição temporal, tendo em vista o drapejamento alude ao período clássico na história da humanidade, ao começo de tudo. Temporalidades que se atravessam incessantemente.

Seus véus solidificam-se. Suas arquiteturas ganham novos contornos e direções.

Thales Leite converte a vasta experiência cotidiana da cidade através do olhar, quando novas realidade se apresentam.